O RAIO DA CRIAÇÃO
O espantoso Gurdjieff
Saltando
as barreiras do tempo e do espaço, o nosso enviado especial, Sérgio
Alagemovits, entrevista Gurdjieff, no ano de 1916, na Rússia, em plena guerra.
O nosso entrevistado é uma das
figuras mais misteriosas e contraditórias do princípio do século. Os pormenores
de sua vida são pouco conhecidos. Consta que fez espionagem a favor de várias
grandes potências, aproveitando-se de suas numerosas viagens à Ásia.
Em
um castelo, em Fontainebleau, criou uma espécie de comunidade filosófica, onde conseguiu reunir considerável
grupo de alunos e adeptos. A par de algumas idéias disparatadas e, até certo
ponto pretensiosas, exprimiu algumasteorias originais, válidas até os dias de
hoje.
Um
dos seus mais destacados discípulos, Ouspensky, reuniu o essencial de suas
divagações no livro “Fragmentos de um Gurdjieff Ensino Desconhecido”, do qual
retiramos o material para a presente entrevista.
Em
1920 está na Alemanha, em 1921, na América. Morreu em Paris em 1949, dizendo
aos seus discípulos. “Deixo-vos em maus lençóis”. Este é o nosso entrevistado
que afirmava, entre outras coisas:
- A
imortalidade não é uma propriedade que nasce com o homem. Ela deve ser
adquirida.
- O
homem não é uma pluralidade. Seu nome é legião.
- A
evolução não é obrigatória ou mecânica. É o resultado de uma luta consciente.
- Um
ritual realizado sem alterações ou deturpações tem mais conteúdo que cem
livros.
Gurdjief
está aqui, bem na minha frente. Tipo oriental, bigodes negros, olhos penetrantes.
Sua simplicidade interior e a naturalidade com que fala, faz que eu esqueça que
estou diante de um homem que representa, para vários grupos de alunos e estudiosos,
o mundo do milagroso e do desconhecido. Está cercado de almofadas e novelos de
lã, de todas as cores. Costura uma delas com uma agulha em forma de gancho.
G –
A fabricação de almofadas é uma das mais antigas formas de arte. Na Ásia, persistem
ainda, os antigos costumes de sua tecelagem. Descobri que o preço das
almofadas
é mais elevado em São Petersburgo do que em Moscou. Por isso,
a
cada viagem, eu levo algumas para vender.
S –
Procuro trazê-lo e indago sobre sua infância.
G –
Não sei como pode isto interessar a alguém, mas passei os primeiros anos da
minha vida nas fronteiras da Ásia Menor, em condições muito pobres. Entre
rebanhos de carneiros e em contato com povos e costumes inusitados. Minha imaginação
foi bastante ativada pelos Yesidas, os “Adoradores do Diabo”, que adotavam
costumes incompreensíveis e tinham uma estranha dependência a leis
desconhecidas e misteriosas para mim. Veja um exemplo: lembro-me perfeitamente,
que os meninos Yesidas eram incapazes de sair de um círculo traçado ao seu
redor, no chão.
S –
Entendo que Gurdjief teve seus primeiros anos de vida em uma atmosfera
de
lendas e tradições. Ao seu redor, o “milagroso” havia sido um fato real.
Escutou
profecias
que eram acatadas e acreditadas pelos adultos que o cercavam.
Participou
de olhos arregalados, de rituais e cânticos mântricos. O conjunto
de
todas estas influências criou nele uma inclinação para o misterioso, para o
incompreensível, para o mágico. No nosso contato preliminar, pude perceber que
ele
falava
de maneira evasiva acerca das escolas e dos lugares onde encontrou o
conhecimento
que, sem dúvida, possui. Sei que tem grupos secretos de pesquisas
e
estudos e pergunto o que deve fazer um homem para assimilar seus ensinamentos.
G –
Que deve fazer? O homem é incapaz de fazer coisa alguma, sem antes compreender.
Tem milhões de idéias falsas e de conceitos falhos, sobretudo acerca de si
mesmo e, se algum dia quiser adquirir algo novo, deve começar por libertar-se
pelo menos de algumas destas idéias.
S –
Mas como pode um homem libertar- se das idéias falsas, se ele depende das suas
formas de percepção que, na maioria das vezes, são falhas?
“Não há nada oculto.
Entretanto, o conhecimento não pode chegar ao homem sem esforço da parte dele. Todos
compreendem isto, quando se trata de conhecimentos comuns.”
“Felizes aqueles
cujo ser pode, ainda, ser modificado. A maioria é apenas um conjunto de máquinas
emperradas com as quais nada pode ser feito. Poucos são os homens que podem receber
o verdadeiro saber.”
“As teorias situam o
homem no centro de tudo. Como se o sol, as estrelas, a Terra e tudo mais que
existe, tivessem sido feitos só
para ele. E assim, esquecem
a medida do homem. Todas as teorias “humanitárias” e “igualitárias” são irrealizáveis
e se realizadas, seriam fatais. Tudo na natureza tem sua meta e seu sentido,
tanto na desigualdade do homem, como no seu sofrimento.”
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G –
É claro que dentro dos limites das percepções humanas pode-se errar em maior ou
menor grau. Mas, a suprema ilusão do homem, é a sua convicção de que pode
fazer. Todo mundo pensa que pode fazer, que pode querer. Porém, para dizer
a
verdade, ninguém pode fazer nada. O homem é uma máquina. Tudo que faz, todas as
suas ações, todas as suas palavras, seus pensamentos, sentimentos, convicções, opiniões
e hábitos, são resultados de influências exteriores. Por si mesmo, o homem não
pode produzir um só pensamento, uma só ação. O homem
é
uma máquina que apenas responde a estímulos externos.
S –
Então, não há absolutamente nada que se possa fazer?
G –
Para fazer alguma coisa, antes é preciso ser.
S –
Entendo que para ser, temos que nos valer dos ensinamentos daqueles
que
já são. Acha você que o estudo da chamada literatura esotérica ou mística, tão
amplamente manuseada nos dias de hoje, possa se constituir em um fator positivo
no
desenvolvimento do homem?
G –
Por meio da leitura podemos alcançar alguns resultados. Porém, os resultados
seriam bem melhores se o homem soubesse ler. Se alguém tivesse compreendido
tudo aquilo que leu durante sua vida, teria um grande conhecimento e eu me
inclinaria a seus pés. Entretanto, a maioria das pessoas não compreende nem o
que lê, nem o que escreve. O essencial é compreender o que se lê. Por isto é
difícil dizer se a leitura é uma prática boa ou ruim. O importante é
compreender o que os livros contêm. Tudo aquilo que o homem sabe fazer bem, é
um fator positivo para ele. Se o homem sabe fazer bem um café ou um par de
botas, já se pode falar com ele. Mas o grande problema é que ninguém sabe fazer
nada bem. Conhece-se tudo, de uma maneira bastante superficial.
S –
Ocorre que, de um modo geral, o conhecimento, isto é, as idéias que poderiam
mudar o relacionamento entre os homens e combater a mentira, o mal e a
ignorância, permanecem em segredo. Somente pequenos grupos as conhecem e se
negam a fazer delas um bem comum. Isto torna as coisas mais difíceis e, até certo
ponto, parece-nos ser uma atitude injusta e egoísta. Por que o grande conhecimento
está velado?
G –
Para aqueles que são capazes de assimilá-lo, o conhecimento está muito mais
acessível do que se pensa. O grande problema é que as pessoas ou não o querem
ou não o podem receber. Na realidade, o conhecimento não pode pertencer a
todos, nem mesmo a muitos. Assim é a Lei.
S –
Como assim?
G –
Você não compreende isto, porque não se dá conta de que o conhecimento é algo material
e possui todas as características da materialidade. E, uma destas
características é a limitação, isto é, em algum lugar dado e, em determinadas condições,
a quantidade de matéria é sempre a mesma. Quando então eu digo que o
conhecimento é material, digo que em determinado lugar e em um período de
tempo, a sua quantidade é previamente definida. Assim, podemos afirmar que
durante o curso de certo período, digamos, um século, a humanidade dispõe de
uma quantidade definida de conhecimento. Porém, sabemos, por uma observação elementar
da própria vida, que a matéria do conhecimento possui qualidades inteiramente
diferentes, conforme seja absorvida em maior ou menor quantidade. Tomada em
grande quantidade por um homem ou por um grupo pequeno de homens, produz
resultados muito bons. Porém, tomada em pequena quantidade por cada um dos
indivíduos que compõem uma grande massa, não dá resultado.
S –
Então você acha que o conhecimento deve ser preservado por pequenos grupos?
G –
Sim. Acho que se um pequeno grupo de homens pudesse concentrar uma grande
quantidade de conhecimento, os resultados seriam maiores e melhores. Isto
porque, se uma quantidade definida de conhecimento for distribuída e assimilada
por milhões de pessoas, cada uma receberá uma dose tão pequena, que o efeito
sobre suas vidas será nulo e não modificará em nada a sua compreensão das
coisas. Vou dar um exemplo para que você compreenda melhor o que estou dizendo.
Se, para dourar objetos tomamos certa quantidade de ouro, teremos que saber o
número exato de objetos que esta quantidade permite dourar. Se dourarmos um
número exagerado de objetos, cada um deles receberá tão pouco ouro, que não
estará dourado, e assim fazendo, teremos desperdiçado o nosso ouro. A
distribuição do conhecimento se baseia em um princípio análogo. Se tivéssemos
que dar conhecimento a todos, ninguém receberia nada.
S –
Esta teoria me parece incorreta, pois a situação daqueles aos
quais
é negado o conhecimento, me parece cruel, triste e injusta.
G –
Absolutamente. Na distribuição do conhecimento não há a menor sombra de
injustiça. A grande maioria das pessoas ignora o desejo de conhecer.
Especialmente nos períodos de loucura coletiva, de guerras e revoluções, quando
os homens entregam as matanças gigantescas. Neste período, uma grande
quantidade
de
conhecimento permanece sem ser reclamada e a acumulação por parte de uns,
depende do abandono por parte de outros. As grandes massas não se preocupam com
o conhecimento e não o querem. Seus interesses e suas aspirações estão voltados
para caminhos que nada têm a ver com a sua aquisição. Analise os interesses
maiores do homem de hoje e veja se não tenho razão.
S –
Mas o caráter oculto e esotérico, com que se reveste o conhecimento,
não
é a causa deste desinteresse das grandes massas? Gurdjieff olhou-me como se eu
não tivesse entendido nada. A minha pergunta não chegou a irritá-lo, mas, largando
sobre um banco de madeira alguns novelos de lã verde que tinha na mão, chegou à
janela e continuou de costas para mim.
G –
Não há nada oculto. Entretanto, o conhecimento não pode chegar ao homem sem
esforço da parte dele. Todos compreendem isto, quando se trata de conhecimentos
comuns. Ninguém ignora que são necessários cinco anos de esforços e estudos
para que se aprenda a prática da medicina. Outros cursos duram até mais tempo e
exigem muita dedicação e perseverança. Contudo, “o grande conhecimento” é considerado
oculto e as pessoas o querem de imediato e sem despender esforços. Assim,
esquecem que devem lutar pela sua evolução e voltam
seus
interesses para coisas sem importância.
S –
E qual o seu conceito de evolução?
G –
A evolução do homem pode ser compreendida como o desenvolvimento de faculdades
e poderes que jamais se desenvolvem por si mesmo, isto é, mecanicamente. Só
este tipo de desenvolvimento ou de crescimento, marca a evolução real do homem.
Não existe nem pode existir outro tipo de evolução. Consideremos o homem no seu
atual grau de desenvolvimento. A natureza o forjou
tal
qual ele é e, analisando coletivamente até onde podemos ver assim ele
permanece. Para compreender a Lei da evolução do homem é indispensável perceber
que esta evolução, além de certo grau, não é necessária para o desenvolvimento
da natureza em determinado momento. Em termos mais precisos, a evolução da
humanidade depende da evolução dos planetas. Porém, o processo
evolutivo
dos planetas, para nós, se desenvolve em ciclos de tempo infinitamente grandes.
No espaço de tempo em que o pensar humano pode abarcar, não pode ter lugar
nenhuma modificação na vida dos planetas e, por conseguinte, não pode também, ter
lugar, nenhuma alteração na vida da humanidade. O homem contém em si mesmo a
possibilidade de sua evolução. Porém, a evolução da humanidade em seu conjunto,
isto é, o desenvolvimento desta possibilidade em todos os homens ou na maioria
deles, não é necessária aos desígnios do planeta Terra ou do mundo
planetário
em geral. Isto até poderia ser prejudicial ou fatal. Por conseguinte, existem
forças especiais de caráter global que se opõem à evolução das grandes massas humanas
e que as mantém no nível de desenvolvimento adequado àquele instante
planetário. Tais são as bases do meu conceito de evolução do homem. Porém, não
há evolução obrigatória ou mecânica. A evolução é o resultado de uma luta
consciente.
S –
E como você entende a evolução do homem, como indivíduo?
G –
No homem, o desenvolvimento se opera ao longo de duas linhas: saber e ser. Para
que a evolução se realize corretamente, ambas as linhas devem avançar juntas,
paralelas uma a outra e sustentando-se mutuamente. Se a linha do saber
ultrapassar a do ser, ou se a do ser avançar mais que a do saber, o
desenvolvimento não é realizado regularmente e, cedo ou tarde, tende a
deter-se. As pessoas captam o que se deve entender por saber. Reconhecem a
possibilidade
de
diferentes níveis de saber; compreendem que o saber pode ser mais ou menos
elevado ou de melhor ou pior qualidade. Porém, não se aplica esta compreensão
ao ser. Para elas, o ser designa apenas a existência à qual, sistematicamente,
opõem a “não existência”. Não são capazes de compreender que o ser pode se
situar, também, em diversos níveis, em várias categorias e esquecem que o saber
depende do ser. Contudo, ninguém compreende isto e não percebe que o grau de
saber de um homem depende do grau do seu ser. É preciso não esquecer que o ser
do homem moderno é de uma qualidade inferior. Às vezes tão inferior que não há
possibilidade de desenvolvimento para ele. Felizes aqueles cujo ser pode,
ainda, ser modificado. A maioria é apenas um conjunto de máquinas emperradas
com as quais nada pode ser feito. Poucos são os homens que podem receber o
verdadeiro saber.
S –
Gurdjieff vagarosamente saiu da janela onde estava, e começou a arrumar algumas
almofadas pequenas. Senti que o que estava ali era apenas seu corpo. Sua mente
estava enfocada em uma linha de raciocínio tão profunda, que não arrisquei
nenhuma pergunta.
G –
Geralmente o equilíbrio entre o ser e o saber é ainda, mais importante que o desenvolvimento
separado de um e de outro. Mas, o desenvolvimento unilateral é exatamente aquilo
que parece interessar mais ao homem de hoje. Predominando o saber o homem sabe,
mas não tem o poder de fazer. É um saber inútil. No caso contrário, ele tem o poder
de fazer, mas não sabe o quê. Na história da humanidade encontramos numerosos
exemplos de civilizações inteiras que pereceram pela desarmonia entre o saber e
o ser.
S –
Você faz referências ao desenvolvimento unilateral do saber e do ser. Qual o
resultado deste desenvolvimento?
G –
No primeiro caso, teremos um yogui débil, no segundo, um Santo estúpido.
S –
E o desenvolvimento do EU individual, como se processa?
G –
Um dos erros mais graves do homem e que lhe deve ser, permanentemente lembrado,
é a sua ilusão a respeito do seu EU. Tal como o conhecemos, o homem máquina, o homem
que não pode fazer e através do qual as coisas apenas acontecem, não pode ter
um EU único e permanente.
Seu EU muda tão rapidamente como seus pensamentos, seus
sentimentos, seus humores. Comete ele um profundo erro quando se considera uma
só pessoa. Na realidade, a cada instante é uma pessoa diferente. O homem não
tem um EU permanente e imutável. Cada pensamento, cada desejo, cada sensação diz
EU.
E, cada vez parece ter-se por seguro que este EU pertence ao Todo do homem,
ao homem inteiro e que um pensamento, um desejo, uma aversão, sejam a expressão
do Todo. Contudo, cada pensamento do homem, cada um dos seus desejos se
manifesta e vive de uma maneira independente e separada do seu Todo. Mas, o
Todo do homem jamais se exprime, pela simples razão de que não existe como tal,
salvo fisicamente como uma “coisa” e abstratamente como um conceito.
O homem
não tem um EU individual. Em seu lugar, há centenas de milhares de pequenos
EU’s separados, que na maioria das vezes, se ignoram, não mantém relações e,
até pelo contrário, hostilizam-se uns aos outros, são exclusivos e
incompatíveis. A cada minuto o homem diz ou pensa EU e, a cada vez, seu EU é diferente.
Até um momento, era um pensamento, agora é um desejo, depois outro pensamento e
assim sucessivamente. O homem é uma pluralidade. Seu nome é legião.
S -
Durante a entrevista com Gurdjieff, chamou-me a atenção a sua naturalidade e,
particularmente a completa ausência de qualquer pretensão de santidade ou de
posses são de poderes “milagrosos”. Entretanto, seus talentos eram
extraordinariamente variados. Suas atitudes, suas idéias, sua figura, não se encaixavam
em nenhuma das medidas comuns. Nas histórias que contou sobre si mesmo, havia muitos
elementos contraditórios e inacreditáveis. Referindo-se ao homem comum, chama-o
de “máquina” e sobre a psicologia como ciência disse-me o seguinte:
G –
Antes devemos compreender quais os objetivos desta ciência. O verdadeiro objeto
da Psicologia é o ser humano, a pessoa. Que psicologia pode haver quando os
homens são máquinas? Para o estudo de máquinas, necessitamos é de mecânica.
Todos
os atos do homem são mecânicos. Ele não se conhece e trabalha como uma máquina.
No momento em que ele se conhecer, deixará de agir como máquina e começará a ser
responsável pelos seus atos.
S –
Então isto significa que o homem não é responsável pelos seus atos?
G –
Um homem é responsável. Uma máquina não o é.
S –
Existe algo de real nos ensinamentos e nos ritos das atuais religiões?
G –
Sim e não. Imagine que agora estamos falando de religião e a minha empregada
Mascha, ouve a conversa. Naturalmente vai compreender aquilo que ouviu à sua
maneira e contará para o seu noivo a parte que recorda. Este, por sua vez, compreenderá
à sua maneira e contará para seu amigo que, indo ao campo, comentará com o povo
aquilo que as pessoas da cidade conversam. Já, então, tudo estará diferente e
não guardará nenhuma relação com aquilo que falamos. É isto, precisamente, o
que ocorre com as religiões hoje existentes e suas origens. Os ensinamentos, as
tradições, os ritos e as orações estão desfigurados e irreconhecíveis. O
essencial perdeu-se há muito tempo.
S –
Estamos em novembro de 1916. A situação da Rússia está cada vez mais tensa e
inquietante. Sente-se que a guerra se aproxima do seu clímax e do seu fim. Um profundo
desânimo domina todas as pessoas como se elas compreendessem e sentissem na
própria carne, o absurdo de tudo aquilo. Todas as tentativas para deter a guerra
foram em vão. Os acontecimentos seguem inexoravelmente,
o seu curso. Noto, ao longo da nossa conversa, uma mordacidade penetrante e um pessimismo
velado acerca do homem e seu futuro. Volto ao assunto da evolução e ele entende
que precisa ser mais claro.
G –
Vou então me alongar um pouco a respeito deste tema. Para muitas pessoas, a
vida da humanidade não se desenvolve como deveria e inventam toda a classe de
teorias para renová-la. E, todas as teorias são fantásticas, sobretudo porque
não leva em conta o mais importante, que é o papel secundário que desempenha a
humanidade e a vida orgânica no Cosmo.
As teorias situam o homem no centro de
tudo. Como se o sol, as estrelas, a Terra e tudo mais que existe, tivessem sido
feitos só para ele.
E assim, esquecem a medida do homem. Todas as teorias “humanitárias”
e “igualitárias” são irrealizáveis e se realizadas, seriam fatais. Tudo na
natureza tem sua meta e seu sentido, tanto na desigualdade do homem, como no
seu sofrimento. Destruir a desigualdade seria destruir toda a possibilidade de
evolução.
Veja o estado atual da humanidade, apesar de todas as teorias
existentes. Podemos dizer que a vida está governada por um grupo de homens conscientes?
Onde estão?
Quem são?
Vemos exatamente o contrário. A vida está em poder dos
mais inconscientes e dos mais adormecidos. Por acaso observamos na vida, a
vitória dos mais capazes e dos mais valentes?
De modo algum. Vemos reinar em
todas as partes a vulgaridade e a estupidez. Podemos dizer que vemos na vida
aspirações à unificação de todos os homens?
Certo que não. Vemos apenas, novas
divisões, novas hostilidades, novos mal entendidos. Se tomarmos a humanidade
como um único homem, vamos observar o crescimento da personalidade em
detrimento da essência, isto é, o crescimento do artificial, do irreal, daquilo
que realmente é nosso, em prejuízo do natural, do real, daquilo que realmente é
nosso. Ao mesmo tempo, você pode notar o aumento desenfreado do automatismo.
A
civilização contemporânea quer autômatos. As pessoas estão perdendo aos poucos,
seus costumes de liberdade e independência e se convertem, cada vez mais, em
“robôs”. Não são mais do que engrenagens de uma máquina.
S –
E como este processo terminará?
G –
É impossível dizer como terminará. É impossível apontar uma saída, se é que existe
esta saída. Só uma coisa é certa: a escravidão do homem aumenta cada vez mais.
E o pior é que se torna um escravo voluntário. Já não tem necessidade de
correntes ou grilhões. Começa a amar sua escravidão e se orgulha dela. Nada
mais terrível
poderia acontecer ao homem. A evolução da humanidade só poderá ser realizada
através de um grupo que, por sua vez, influirá no restante das pessoas e as
dirigirá.
S –
E este grupo já existe?
G –
Pelos sinais existentes, podemos dizer que existe um grupo dedicado a este
trabalho, porém, é tão pequeno que se torna insuficiente para influir no resto
da humanidade.
S –
Os componentes deste pequeno grupo consciente se conhecem? Tem um
relacionamento social? Quantos são?
G –
É claro que se conhecem. Não poderia ser de outra maneira. Imagine dois ou três
homens acordados no meio de uma multidão de adormecidos em sono profundo.
Certamente se conhecerão. E, a única maneira de saber quantos estão acordados,
é acordar também.
Gurdjieff morreu em 1949, em Paris. Suas afirmações, até hoje,
são objeto de controvérsias e discussões. Sua figura estranha e suas idéias
profundas e polêmicas deixam-nos a certeza de que a reflexão das mentes
superiores não tem época, nem local: são eternas e universais.
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