NIETZSCHE E A PROBLEMÁTICA RELIGIOSA:
A CRÍTICA ITALIANA NA DÉCADA DE 70'
Alberto Chirore
Provavelmente um dos motivos da atenção endereçada ao filósofo de Rocken é a sua capacidade de descrever e, principalmente, criticar a sociedade do seu tempo e, em primeiro lugar, os valores nos quais esta sociedade se baseava. Era um mundo, aquele no qual viveu Nietzsche, que estava passando por uma crise de valores. A ciência na qual se era apostado para resolver cada problema apresentava o seu limite e, em todo caso, a pesquisa não andava com a rapidez esperada. O poder da burguesia estava ameaçado pelo surgimento do movimento anarquista e pelas primeiras organizações de operários e camponeses estruturados em ligas, sindicatos e partidos. A crueldade com a qual foi sufocada, com grande derramamento de sangue, a experiência da Comuna de Paris, em 1871, é testemunho de quanto a burguesia temesse a força emergente das classes subalternas.
E óbvio, portanto, que letrados e filósofos se perguntassem o porque das derrotas e das revoltas e procurassem as suas causas apontando os responsáveis. A Europa, no final do século passado, estava mergulhada numa crise de valores e de identidade e estava procurando novos equilíbrios. É. a mesma situação em que se encontra a Europa no final deste séc Jo: e é este um dos motivos pelo qual. frisadas as diferenças entre os dois períodos históricos, nos estamos aproximando com renovado interesse e autores que enfrentaram a crise de valores da sociedade em que viviam, analisando as suas causas filosóficas, políticas e também religiosas.
Neste amplo movimento de pesquisa um dos maiores expoentes é o filósofo Friedrich Nietzsche. Este é autor complexo, às vezes enigmático, que procura as causas da crise do ocidente não com frieza catedrática mas com uma paixão que alcança até o envolvimento pessoal. Esta postura é evidente, principalmente, quando Nietzsche examina o problema religioso.
Pode ser. então interessante analisar de que maneira se discutiu na Itália sobre esta problemática nos últimos anos, esta tese, cujas ideias principais estamos apresentando neste artigo, foi justamente estruturada para deixar espaço às argumentações daqueles estudiosos que, desde 1970 até 1980, analisaram o aspecto religioso do pensamento nietzscheano. Este setor da ampla elaboração de Nietzsche abrange: teologia, história, filosofia, mitologia, e exegese bíblica. Os temas analisados pelos estudiosos abrangem: o relacionamento entre racionalidade e irracionalidade e entre Dioniso e Cristo; a morte de Deus e a definição do conceito de divino, da vontade de potência e de eterno retorno; a apresentação do superhornem e de um cristianismo pronto às experiências da sociedade burguesa.
Da análise dessas diversas personalidades brotam as concepções que representam o diverso modo de entender a dimensão do divino na qual se explica a dialética experimental nietzscheana; de um lado o divino autêntico e do outro lado o divino inautêntico. Dionísio e Jesus Cristo são, portanto, a personificação de dois mundos antitéticos.
Dioniso é apresentado como o deus que aceita e justifica a vida em todos os seus aspectos sem colocar limites à própria potencialidade. Até Apolo. famoso pela sua fria racionalidade, colocado por Nietzsche ao lado de Dioniso, consegue cumprir somente a função de guia ao conhecimento de um deus entregue à exaltação de uma postura tão irracional que resultaria de outra maneira incompreensível. O equilíbrio alcançado entre dois deuses tão antitéticos, Dioniso e Apolo, é a base na qual se funda o confronto com Jesus Cristo. Este é apresentado como uma personagem submissa e apaixonada pelos fracos e, portanto, sem aquelas características assumidas por Dioniso, aptas a fazê-lo considerar um deus.
A esta altura alguns críticos italianos (Calogero Riggi, Guido Sommavilla) frisam a diferença entre dois mundos em contraste. Estes dois mundos, que podemos definir religiosos, têm como pontos de referência, de alguma forma fideística: a imanência e transcendência.
Afinal a contraposição entre Dioniso e o Crucifixo (símbolo da morte e ressurreição de Cristo e portanto da sua transcendência) está justamente na inconciliabilidade do imanente com o transcendente e, mais do que isso, o motivo de disputa é a possibilidade da imanência se tornar divina em detrimento da transcendência.
Dioniso contra o Crucifixo. O problema está colocado nas primeiras páginas da tese e foi desenvolvido ao longo do trabalho onde se ilustraram os dois mundos ligados às diversas concepções.
Um outro tema importante, mas pouco considerado pelos críticos, é a diversidade dos planos histórico-sociais nos quais os dois mundos e as personagens que os animam se movimentam.
Com certeza este trabalho nos levaria a ampliar demais o campo de estudo. É importante, porém, considerar que as diversas posições, as nossas e aquelas de Nietzsche, são fruto de processos históricos e devem ser aceitas e/ou recusadas baseando-se. também, nestas considerações.
Na primeira parte da tese foi minha preocupação apresentar, brevemente, o pano de fundo histórico onde operou Nietzsche e evidenciar alguns pensamentos do filósofo que os levarão a tomar importantes decisões no decorrer de sua análise filosófica.
A primeira destas decisões é a drástica vontade de proclamar a morte de Deus. Esta é considerada por Nietzsche um evento simbólico que significa o fim de qualquer condicionamento do homem por parte de uma entidade externa a ele. É então negada a transcendência e qualquer teologia ligada a ela, mas é ainda possível conceber uma teologia centrada na imanência. Nesta parte da tese se analisam os motivos que demonstram a inutilidade e a importância de um Deus que quer escrutar, perto demais, a vida do homem; do outro lado se examinam as capacidades e as potencialidades que Nietzsche reconhece no homem.
É importante frisar que o filósofo não proclama um ateísmo absoluto porque é anunciada a morte de Deus não a sua inexistência. Deus é uma ilusão que vive somente na consciência do homem que se libera desta ilusão quando se torna plenamente ciente das suas capacidades, redesenhando a realidade com parâmetros próprios; uma realidade donde Deus é excluído.
A morte de Deus é considerada como o evento que ao mesmo tempo marca o término da infância do homem e abre os horizontes da sua maturidade livre e criadora. A análise filosófica realizada por Nietzsche chama a atenção dos estudiosos sobre este aspecto fundamental do seu pensamento como ponto de passagem, entre o que é e o que deverá ser em termos de visão do mundo, de filosofia, de teologia e portanto de elaboração cultural tout-court.
"Deus morre no único lugar em que existia a consciência humana", frisa António Banfi em "Introduzione a Nietzsche", revelando a ilusão e a vacuidade da fé do homem mas evidenciando, ao mesmo tempo, a profundidade e a tenacidade da crença no Deus do cristianismo. É justamente este dúplice aspecto de falsidade e fidelidade ligadas à religiosidade tradicional que Nietzsche frisa marcadamente quando, depois de ter dado o anúncio da morte de Deus, constata a imensa dificuldade de sua propagação.
O filósofo tem fé nas potencialidades do homem e na sua firme centrada numa dimensão imanente, onde o indivíduo expressa a verdadeira essência do seu ser, não pode ser considerada ateia ou materialística no sentido tradicional. Nos parece que, excluindo o posicionamento de Guido Sommavilla, todos os outros estudiosas, Giorgio Penzo em primeiro lugar, frisam a religiosidade do pensamento nietzscheano. Penzo evidencia a passagem de uma dimensão inautêntica a uma autêntica do divino. A morte de Deus desarranja a tranquilidade do homem, o coloca frente às suas responsabilidades ou, mais simplesmente, frente à realidade. A tarefa que Nietzsche quer realizar é aquela de transformar o homem num deus capaz de conquistar em cada instante a própria divindade e não de vivê-la desde a eternidade. Eis a diferença substancial entre a concepção nietzscheana e aquela cristã. Morta, junto ao seu Deus, esta última deixa o campo à elaboração filosófico-teológica de Nietzsche, centrada no homem engajado no seu superamento num super homem capaz de encarnar, em si mesmo, a vontade de potência como essência da realidade, e em condição de viver tão plenamente cada átimo da própria vida que quer voltar a revivê-lo pela eternidade. É neste ser que, segundo Nietzsche, o homem deve-se transformar depois da morte de Deus.
O filósofo imagina um futuro em que o homem, vencido Deus. se coloca no centro do universo, isto é, morre Deus mas não o divino.
O sujeito da nova dimensão do divino deve ser o homem, ou melhor, o super homem que expressa a própria vontade de potência na afirmação de cada átimo de sua existência que é justificada em cada aspecto tanto de querer o seu eterno retorno.
O super homem, a vontade de potência e o eterno retomo constituem os conceitos principais ao redor dos quais rodeia toda a estrutura filosófico-religiosa de Nietzsche.
Resulta difícil avaliar este aspecto do pensamento nietzscheano. que se baseia numa leitura da realidade realizada com instrumentos tão diferentes daqueles usados antes dele que nos fizeram aparecer esta mesma realidade num aspecto admitir que o homem alcance a liberdade e a autenticidade aceitando o eterno retorno do idêntico e limitando a sua autonomia de decisão ao momento da aceitação fideísta da realidade assim como ela é.
O confronto com a história é portanto, inevitável, Nietzsche o aceita e o confronto com o cristianismo, que teve grande importância na história do pensamento ocidental e naquela pessoal do filósofo, representa um dos momentos mais sofridos da sua vida de homem e de pensador.
É através do conflito para recusar os valores ligados ao cristianismo, que Nietzsche consegue teorizar a própria filosofia. Para evidenciar este conflito coloquei logo Dioniso contra Jesus Cristo, pois esta contraposição inclui a oposição entre Dioniso e o Crucifixo, isto é, entre a concepção filósofo-teológica de Nietzsche e aquela teológico-doutrinária do cristianismo com as suas ligações históricas e sociais.
É importante frisar, então, a ligação profunda que unia Nietzsche à história do seu tempo e quanta influência teve a educação familiar no desenvolvimento da personalidade e do pensamento do filósofo. É interessante evidenciar, também, que a crítica à religião cristã e aos seus valores, às vezes coincidentes com aqueles do ocidente, pode ser realizada somente do ponto de vista histórico e, finalmente, é útil constatar que também uma crítica radical, como aquela de Nietzsche pode não levar a um ateísmo igualmente radical mas à procura de uma dimensão mais autêntica do divino.
Quanto a história do cristianismo influenciou a análise de Nietzsche em relação ao problema religioso? A sua crítica ao cristianismo se refere somente a um período histórico ou envolve os próprios fundamentos desta religião? Qual foi a influência da experiência pessoal do filósofo no desenvolvimento da concepção religiosa dele?
São as perguntas principais às quais os estudiosos italianos responderam de maneira diferente. Lembramos Raffaele Vela, Giovanni Casoni e António Banfí entre aqueles que evidenciam as degenerações do cristianismo e Giorgio Penzo, Giorgio Colli e Roberto Escobar entre os que constatam uma diferenciação radical e insanável entre a doutrina cristã e a filosofia de Nietzsche e finalmente Giovanni Maria Bertin e Roberto Maria Siena se dedicam a constatar diferenças e pontos de contato entre as duas concepções. Um leque tão amplo de posições agora só acenadas, testemunha a dificuldade de fornecer respostas definitivas às perguntas formuladas antes. Um dado, porém, é evidente, a tentativa nietzscheana de negar, no piano histórico, uma religião cuja vacuidade ele tentou demonstrar no plano filosófico. Prova disso é que o filósofo propõe a sua concepção depois de ter negado, seja a encarnação de Deus em Jesus Cristo, seja a transcendência deste mesmo Deus proclamando a morte dele.
Como já tivemos ocasião de observar, se pode reafirmar que Nietzsche procura um divino autêntico para contrapô-lo a um divino inautêntico; mas qual é a causa desta inautenticidade?
Para responder a esta pergunta tem que ser reintroduzida a problemática histórica e precisa, portanto, perguntar em que medida a concepção originária da doutrina cristã e o desenvolvimento histórico do cristianismo tenham contribuído na construção do divino inautêntico recusado por Nietzsche. A esta interrogação se pode responder facilmente que não existe este tipo de separação; na realidade deus sempre falou e escreveu através dos homens e estes falaram e escreveram, no decorrer do tempo, atribuindo a Deus ações e/ou pensamentos muito diferentes entre eles. E possível afirmar, então, que Nietzsche, negando Deus e o cristianismo, nega na realidade uma interpretação histórica de uma divindade e de uma religião.
Reafirmamos, portanto, a vontade demonstrada por Nietzsche na procura da dimensão do divino, apesar da negatividade dos exemplos que o rodeavam. Mas então esta sede de eterno provada pelo filósofo é destinada a sobreviver, também, a provas muito duras e dilacerantes? Nietzsche com a sua obra parece responder afirmativamente.
Bibliografia
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1973. Significato delia "morte di Dio" in Nietzsche. In: "Vita socia!e"; Pisíoia
A CRÍTICA ITALIANA NA DÉCADA DE 70'
Alberto Chirore
Há vários anos. na Itália, está-se assistindo a um interesse cada vez mais crescente pela vida e as obras de Friedrich Nietzsche analisadas em muitos aspectos, mediante livros, artigos e filmes também.
Provavelmente um dos motivos da atenção endereçada ao filósofo de Rocken é a sua capacidade de descrever e, principalmente, criticar a sociedade do seu tempo e, em primeiro lugar, os valores nos quais esta sociedade se baseava. Era um mundo, aquele no qual viveu Nietzsche, que estava passando por uma crise de valores. A ciência na qual se era apostado para resolver cada problema apresentava o seu limite e, em todo caso, a pesquisa não andava com a rapidez esperada. O poder da burguesia estava ameaçado pelo surgimento do movimento anarquista e pelas primeiras organizações de operários e camponeses estruturados em ligas, sindicatos e partidos. A crueldade com a qual foi sufocada, com grande derramamento de sangue, a experiência da Comuna de Paris, em 1871, é testemunho de quanto a burguesia temesse a força emergente das classes subalternas.
E óbvio, portanto, que letrados e filósofos se perguntassem o porque das derrotas e das revoltas e procurassem as suas causas apontando os responsáveis. A Europa, no final do século passado, estava mergulhada numa crise de valores e de identidade e estava procurando novos equilíbrios. É. a mesma situação em que se encontra a Europa no final deste séc Jo: e é este um dos motivos pelo qual. frisadas as diferenças entre os dois períodos históricos, nos estamos aproximando com renovado interesse e autores que enfrentaram a crise de valores da sociedade em que viviam, analisando as suas causas filosóficas, políticas e também religiosas.
Neste amplo movimento de pesquisa um dos maiores expoentes é o filósofo Friedrich Nietzsche. Este é autor complexo, às vezes enigmático, que procura as causas da crise do ocidente não com frieza catedrática mas com uma paixão que alcança até o envolvimento pessoal. Esta postura é evidente, principalmente, quando Nietzsche examina o problema religioso.
Pode ser. então interessante analisar de que maneira se discutiu na Itália sobre esta problemática nos últimos anos, esta tese, cujas ideias principais estamos apresentando neste artigo, foi justamente estruturada para deixar espaço às argumentações daqueles estudiosos que, desde 1970 até 1980, analisaram o aspecto religioso do pensamento nietzscheano. Este setor da ampla elaboração de Nietzsche abrange: teologia, história, filosofia, mitologia, e exegese bíblica. Os temas analisados pelos estudiosos abrangem: o relacionamento entre racionalidade e irracionalidade e entre Dioniso e Cristo; a morte de Deus e a definição do conceito de divino, da vontade de potência e de eterno retorno; a apresentação do superhornem e de um cristianismo pronto às experiências da sociedade burguesa.
A tese analisa estes temas iniciando das premissas das quais Nietzsche partiu para desenvolver a sua concepção filosófico-teológica. Para esclarecer melhor estas premissas me pareceu oportuno confrontar os protagonistas da obra de Nietzsche "O nascimento da tragédia", Dioniso e Apolo, com Jesus Cristo.
Da análise dessas diversas personalidades brotam as concepções que representam o diverso modo de entender a dimensão do divino na qual se explica a dialética experimental nietzscheana; de um lado o divino autêntico e do outro lado o divino inautêntico. Dionísio e Jesus Cristo são, portanto, a personificação de dois mundos antitéticos.
Dioniso é apresentado como o deus que aceita e justifica a vida em todos os seus aspectos sem colocar limites à própria potencialidade. Até Apolo. famoso pela sua fria racionalidade, colocado por Nietzsche ao lado de Dioniso, consegue cumprir somente a função de guia ao conhecimento de um deus entregue à exaltação de uma postura tão irracional que resultaria de outra maneira incompreensível. O equilíbrio alcançado entre dois deuses tão antitéticos, Dioniso e Apolo, é a base na qual se funda o confronto com Jesus Cristo. Este é apresentado como uma personagem submissa e apaixonada pelos fracos e, portanto, sem aquelas características assumidas por Dioniso, aptas a fazê-lo considerar um deus.
A esta altura alguns críticos italianos (Calogero Riggi, Guido Sommavilla) frisam a diferença entre dois mundos em contraste. Estes dois mundos, que podemos definir religiosos, têm como pontos de referência, de alguma forma fideística: a imanência e transcendência.
Afinal a contraposição entre Dioniso e o Crucifixo (símbolo da morte e ressurreição de Cristo e portanto da sua transcendência) está justamente na inconciliabilidade do imanente com o transcendente e, mais do que isso, o motivo de disputa é a possibilidade da imanência se tornar divina em detrimento da transcendência.
Dioniso contra o Crucifixo. O problema está colocado nas primeiras páginas da tese e foi desenvolvido ao longo do trabalho onde se ilustraram os dois mundos ligados às diversas concepções.
Estas, porém, não são monólitos, mas se articulam e concretizam mediante personagens como: Dioniso, Apolo. Jesus Cristo. Paulo de Tarso. O choque, o confronto, o encontro destas personagens. representantes cada uma de um aspecto das diferentes posições, enriquece o debate e permite aos críticos (Giovanni Maria Bertin, António Banfi. Giorgio Penzo.
Roberto Maria Siena. Roberto Escobar) de inserir-se neste mesmo debate com comentários e análises, enfrentando, separadamente, os diversos assuntos.
Um outro tema importante, mas pouco considerado pelos críticos, é a diversidade dos planos histórico-sociais nos quais os dois mundos e as personagens que os animam se movimentam.
Precisaria considerar quais culturas produziram o mito de Dioniso e a religião cristã, o contexto em que Nietzsche estudou estes fenómenos, como se estudam no mundo contemporâneo, e, finalmente como, tendo esclarecido todos estes pontos, se analisa o pensamento de Nietzsche hoje em dia.
Com certeza este trabalho nos levaria a ampliar demais o campo de estudo. É importante, porém, considerar que as diversas posições, as nossas e aquelas de Nietzsche, são fruto de processos históricos e devem ser aceitas e/ou recusadas baseando-se. também, nestas considerações.
Na primeira parte da tese foi minha preocupação apresentar, brevemente, o pano de fundo histórico onde operou Nietzsche e evidenciar alguns pensamentos do filósofo que os levarão a tomar importantes decisões no decorrer de sua análise filosófica.
A primeira destas decisões é a drástica vontade de proclamar a morte de Deus. Esta é considerada por Nietzsche um evento simbólico que significa o fim de qualquer condicionamento do homem por parte de uma entidade externa a ele. É então negada a transcendência e qualquer teologia ligada a ela, mas é ainda possível conceber uma teologia centrada na imanência. Nesta parte da tese se analisam os motivos que demonstram a inutilidade e a importância de um Deus que quer escrutar, perto demais, a vida do homem; do outro lado se examinam as capacidades e as potencialidades que Nietzsche reconhece no homem.
É importante frisar que o filósofo não proclama um ateísmo absoluto porque é anunciada a morte de Deus não a sua inexistência. Deus é uma ilusão que vive somente na consciência do homem que se libera desta ilusão quando se torna plenamente ciente das suas capacidades, redesenhando a realidade com parâmetros próprios; uma realidade donde Deus é excluído.
A morte de Deus é considerada como o evento que ao mesmo tempo marca o término da infância do homem e abre os horizontes da sua maturidade livre e criadora. A análise filosófica realizada por Nietzsche chama a atenção dos estudiosos sobre este aspecto fundamental do seu pensamento como ponto de passagem, entre o que é e o que deverá ser em termos de visão do mundo, de filosofia, de teologia e portanto de elaboração cultural tout-court.
"Deus morre no único lugar em que existia a consciência humana", frisa António Banfi em "Introduzione a Nietzsche", revelando a ilusão e a vacuidade da fé do homem mas evidenciando, ao mesmo tempo, a profundidade e a tenacidade da crença no Deus do cristianismo. É justamente este dúplice aspecto de falsidade e fidelidade ligadas à religiosidade tradicional que Nietzsche frisa marcadamente quando, depois de ter dado o anúncio da morte de Deus, constata a imensa dificuldade de sua propagação.
O filósofo tem fé nas potencialidades do homem e na sua firme centrada numa dimensão imanente, onde o indivíduo expressa a verdadeira essência do seu ser, não pode ser considerada ateia ou materialística no sentido tradicional. Nos parece que, excluindo o posicionamento de Guido Sommavilla, todos os outros estudiosas, Giorgio Penzo em primeiro lugar, frisam a religiosidade do pensamento nietzscheano. Penzo evidencia a passagem de uma dimensão inautêntica a uma autêntica do divino. A morte de Deus desarranja a tranquilidade do homem, o coloca frente às suas responsabilidades ou, mais simplesmente, frente à realidade. A tarefa que Nietzsche quer realizar é aquela de transformar o homem num deus capaz de conquistar em cada instante a própria divindade e não de vivê-la desde a eternidade. Eis a diferença substancial entre a concepção nietzscheana e aquela cristã. Morta, junto ao seu Deus, esta última deixa o campo à elaboração filosófico-teológica de Nietzsche, centrada no homem engajado no seu superamento num super homem capaz de encarnar, em si mesmo, a vontade de potência como essência da realidade, e em condição de viver tão plenamente cada átimo da própria vida que quer voltar a revivê-lo pela eternidade. É neste ser que, segundo Nietzsche, o homem deve-se transformar depois da morte de Deus.
O filósofo imagina um futuro em que o homem, vencido Deus. se coloca no centro do universo, isto é, morre Deus mas não o divino.
O sujeito da nova dimensão do divino deve ser o homem, ou melhor, o super homem que expressa a própria vontade de potência na afirmação de cada átimo de sua existência que é justificada em cada aspecto tanto de querer o seu eterno retorno.
O super homem, a vontade de potência e o eterno retomo constituem os conceitos principais ao redor dos quais rodeia toda a estrutura filosófico-religiosa de Nietzsche.
Resulta difícil avaliar este aspecto do pensamento nietzscheano. que se baseia numa leitura da realidade realizada com instrumentos tão diferentes daqueles usados antes dele que nos fizeram aparecer esta mesma realidade num aspecto admitir que o homem alcance a liberdade e a autenticidade aceitando o eterno retorno do idêntico e limitando a sua autonomia de decisão ao momento da aceitação fideísta da realidade assim como ela é.
O super homem símbolo da humanidade renovada, é imaginado acogulado de uma vontade de potência incapaz de modificar a realidade, isto é, de realizar uma ação verdadeiramente criadora. A mesma realidade não colocando-se alternativas, se auto justifica e o ser acaba assim para se identificar com o "divenire". cada anseio escatológico é negado, cada concepção ligada à transcendência é recusada.
Nietzsche envolve assim, na condenação da moral do seu tempo também os princípios religiosos que, no decorrer dos séculos, tinham dado urna contribuição essencial à formulação dela. A filosofia de Nietzsche se resume na tentativa de pôr a realidade e o homem, emergido nela, longe e seguros da influência corruptora da história e, mais em geral, do inelutável escorrer do tempo. Mas o mesmo Nietzsche estava consciente das dificuldades objetivas que enfrentava o seu pensamento. Em relação a isso Giorgio Penzo lembra que o filósofo fala de um furor da vontade, no sentido de vontade de potência, em condição de afirmar o eterno retorno. Furor este provocado pelo fato de que o tempo não volta atrás.
O confronto com a história é portanto, inevitável, Nietzsche o aceita e o confronto com o cristianismo, que teve grande importância na história do pensamento ocidental e naquela pessoal do filósofo, representa um dos momentos mais sofridos da sua vida de homem e de pensador.
É através do conflito para recusar os valores ligados ao cristianismo, que Nietzsche consegue teorizar a própria filosofia. Para evidenciar este conflito coloquei logo Dioniso contra Jesus Cristo, pois esta contraposição inclui a oposição entre Dioniso e o Crucifixo, isto é, entre a concepção filósofo-teológica de Nietzsche e aquela teológico-doutrinária do cristianismo com as suas ligações históricas e sociais.
É importante frisar, então, a ligação profunda que unia Nietzsche à história do seu tempo e quanta influência teve a educação familiar no desenvolvimento da personalidade e do pensamento do filósofo. É interessante evidenciar, também, que a crítica à religião cristã e aos seus valores, às vezes coincidentes com aqueles do ocidente, pode ser realizada somente do ponto de vista histórico e, finalmente, é útil constatar que também uma crítica radical, como aquela de Nietzsche pode não levar a um ateísmo igualmente radical mas à procura de uma dimensão mais autêntica do divino.
Quanto a história do cristianismo influenciou a análise de Nietzsche em relação ao problema religioso? A sua crítica ao cristianismo se refere somente a um período histórico ou envolve os próprios fundamentos desta religião? Qual foi a influência da experiência pessoal do filósofo no desenvolvimento da concepção religiosa dele?
São as perguntas principais às quais os estudiosos italianos responderam de maneira diferente. Lembramos Raffaele Vela, Giovanni Casoni e António Banfí entre aqueles que evidenciam as degenerações do cristianismo e Giorgio Penzo, Giorgio Colli e Roberto Escobar entre os que constatam uma diferenciação radical e insanável entre a doutrina cristã e a filosofia de Nietzsche e finalmente Giovanni Maria Bertin e Roberto Maria Siena se dedicam a constatar diferenças e pontos de contato entre as duas concepções. Um leque tão amplo de posições agora só acenadas, testemunha a dificuldade de fornecer respostas definitivas às perguntas formuladas antes. Um dado, porém, é evidente, a tentativa nietzscheana de negar, no piano histórico, uma religião cuja vacuidade ele tentou demonstrar no plano filosófico. Prova disso é que o filósofo propõe a sua concepção depois de ter negado, seja a encarnação de Deus em Jesus Cristo, seja a transcendência deste mesmo Deus proclamando a morte dele.
Como já tivemos ocasião de observar, se pode reafirmar que Nietzsche procura um divino autêntico para contrapô-lo a um divino inautêntico; mas qual é a causa desta inautenticidade?
Para responder a esta pergunta tem que ser reintroduzida a problemática histórica e precisa, portanto, perguntar em que medida a concepção originária da doutrina cristã e o desenvolvimento histórico do cristianismo tenham contribuído na construção do divino inautêntico recusado por Nietzsche. A esta interrogação se pode responder facilmente que não existe este tipo de separação; na realidade deus sempre falou e escreveu através dos homens e estes falaram e escreveram, no decorrer do tempo, atribuindo a Deus ações e/ou pensamentos muito diferentes entre eles. E possível afirmar, então, que Nietzsche, negando Deus e o cristianismo, nega na realidade uma interpretação histórica de uma divindade e de uma religião.
Reafirmamos, portanto, a vontade demonstrada por Nietzsche na procura da dimensão do divino, apesar da negatividade dos exemplos que o rodeavam. Mas então esta sede de eterno provada pelo filósofo é destinada a sobreviver, também, a provas muito duras e dilacerantes? Nietzsche com a sua obra parece responder afirmativamente.
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