Gnose Cristã
Frithjof Schuon
O Cristianismo é que “Deus se fez
o que nós somos, para nos fazer o que ele é” (Santo Irineu); é que o Céu se
tornou terra, a fim de que a terra se torne Céu.
O Cristo retraça no mundo
exterior e histórico o que acontece, desde o começo do
tempo, no mundo interior da alma.
No homem, o Espírito puro se faz ego, a fim de que o ego se torne puro
Espírito; o Espírito ou o Intelecto (Intellectus, não mens ou ratio) se faz ego
encarnando-se na mente sob a forma de intelecção, de verdade, e o ego torna-se
Espírito ou Intelecto unindo-se a ele.
O Cristianismo é assim uma
doutrina de união, ou a doutrina da união: o Princípio
se une à manifestação, a fim de
que esta se una ao Princípio; de onde o simbolismo do amor e a predominância da
via “bháktica”. Deus tornou-se homem “por causa de seu imenso amor”(Santo
Irineu), e o homem deve se unir a Deus também pelo “amor”, seja qual for o sentido
– volitivo, emotivo ou intelectivo – que se dê a este termo. “Deus é Amor”: ele
é – enquanto Trindade – União e ele quer a União.
Agora, qual é o conteúdo do
Espírito, ou, dito de outro modo, qual é a mensagem do Cristo? Pois o que a
mensagem do Cristo é, é também, em nosso microcosmo, o conteúdo eterno do
Intelecto. Essa mensagem ou esse conteúdo é: ama Deus com todas as tuas
faculdades e, em função desse amor, ama o próximo como a ti mesmo; ou seja:
una-te – pois “amar” é essencialmente “unir-se” – ao Intelecto e, em função ou
como condição dessa união, abandona todo o egocentrismo e discerne o Intelecto,
o Espírito, o Si divino, em todas as coisas. “Pois tudo o que tiverdes feito a
um desses meus irmãos mais pequeninos, a Mim é que o fizestes.”
Essa mensagem – ou essa verdade
inata – do Espírito prefigura a cruz, pois há aqui duas dimensões, uma
“vertical” e outra “horizontal”, a saber, o amor a Deus e o ao próximo, ou a
União ao Espírito e a união à nossa ambiência, considerada, esta, como
manifestação do Espírito. De um ponto de vista um pouco diferente, essas duas
dimensões são representadas respectivamente pelo conhecimento e pelo amor:
“conhece-se” Deus e “ama-se” o próximo, ou ainda: ama-se Deus conhecendo-o, e
conhece-se o próximo amando-o.
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Mas o sentido mais profundo da
mensagem crística, ou da verdade conatural ao Intelecto, é que a manifestação
não é senão o Princípio; e é essa a mensagem do Princípio à manifestação.
Na prática, toda a questão é
saber como se unir ao Logos ou ao Intelecto. O meio
central é a “prece”, cuja
quintessência é objetivamente o Nome de Deus e subjetivamente a concentração,
de onde a obrigação de invocar Deus com fervor. Mas essa “prece”, essa união de
todo o nosso ser a seu princípio ou a sua fonte divina, permaneceria ilusória
sem uma certa união a nossa totalidade, o “próximo” universal do qual somos
como um fragmento ou uma parcela; a cisão entre o homem e Deus não poderia ser
abolida sem que seja abolida a cisão entre “mim” e “o outro”; nós não podemos
reconhecer que Deus é em nós sem ver que ele é no outro, e como ele é no outro.
A manifestação deve se unir ao Princípio, e – no plano da manifestação e em
função dessa união “vertical” – a parte deve se unir à totalidade.
Interiormente, se queremos
compreender que a alma inteligente é “essencialmente” – não em sua
acidentalidade – o Intelecto ou o Espírito, devemos compreender também que o
ego, incluindo o corpo, é “essencialmente” uma manifestação do Intelecto ou do
Si. Se queremos entender que “o mundo é falso, Brahma é verdadeiro”, devemos
entender também que “tudo é Atmâ”. É esse o sentido mais profundo do amor ao
próximo.
Os sofrimentos do Cristo são os
do Intelecto em meio às paixões. A coroa de espinhos é o individualismo, o
“orgulho”; a cruz, é o esquecimento ou a rejeição do Espírito e, com ele, da
Verdade. A Virgem é a alma submetida ao Espírito e unida a ele.
A própria forma do ensinamento do
Cristo se explica pelo fato de que o Cristo se dirigiu a todos os homens, do
primeiro ao último; ele não podia portanto dar à sua mensagem um modo de
expressão inacessível a certas inteligências e ineficaz ou mesmo prejudicial para
elas. Um Shankara pôde ensinar a pura gnose porque ele não se dirigiu a todos e
podia não fazê-lo, a tradição hindu existindo antes dele e comportando a priori
vias adaptadas às inteligências modestas e aos temperamentos passionais. Mas o
Cristo, enquanto fundador de um universo espiritual e social, não podia não se
dirigir a todos.
Se é falso censurar ao Cristo não
ter ensinado explicitamente a pura gnose – que ele no entanto ensinou por sua
vinda, por sua pessoa, sua vida e sua morte, bem como por suas parábolas, seus
gestos e seus milagres –, é igualmente falso negar o sentido gnóstico de sua mensagem
e negar assim aos contemplativos intelectivos – ou seja, centrados na verdade metafísica
e na pura contemplação ou na Inteligência pura e direta – o direito à
existência e todos os direitos reservados. É permitida a impressão deste texto,
para usos individuais e particulares apenas. É proibida toda reprodução
eletrônica, sob qualquer forma, bem como toda reprodução impressa que não
individual e para uso particular. (www.sapientia.com.br) não lhes oferecer
nenhuma via em conformidade com sua natureza e sua vocação. Isso é contrário à
parábola dos talentos, e à afirmação de que “há muitas moradas na casa de meu Pai”.
Todo o Cristianismo se enuncia na
doutrina trinitária, e esta representa essencialmente uma perspectiva de união;
ela considera a união já in divinis: Deus prefigura em sua própria natureza as
relações entre ele e o mundo, relações que, de resto, só são “externas” em modo
ilusório.
“E a Luz luziu nas trevas, e as
trevas não a compreenderam”: esta verdade se realizou – e se realiza – no seio
mesmo do Cristianismo, pela incompreensão e rejeição da gnose.
E é isso que explica em parte o
destino do mundo ocidental.
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